NARRATIVAS EM TEMPOS DE CRISE: A PESTE, DE ALBERT CAMUS, A RECEPÇÃO NO BRASIL, A PARTIR DE JACQUES MADAULE E BENEDITO NUNES: RELAÇÕES DE PODER, MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES.

João Ricardo Barros Silva
Luís Antônio Contatori Romano

Esta comunicação visa refletir sobre a recepção do romance A peste, de Albert Camus (1913-1960), no Brasil, a partir das publicações do crítico francês Jacques Madaule, no jornal carioca A manhã, em 1948, e do filósofo paraense Benedito Nunes, na Folha do Norte, de Belém, em 1951. O romance A peste, de autoria do escritor, filósofo e dramaturgo franco-argelino, Albert Camus (1913-1960), foi publicado na França em 1947 e traduzido no Brasil, pela primeira vez, por Graciliano Ramos (1892-1953), então autor já consagrado no mercado editorial nacional, e publicado, em primeira mão, pela editora José Olympio no ano de 1950. 

O escopo desta comunicação é levar a compreender as possíveis relações de poder, memórias e representações em A peste, como sendo uma narrativa em tempos de crise, tendo-a como uma temática viral, como apresentação alegórica da Segunda Guerra Mundial, e também possibilidades de transposição para novos contextos, como o da atual pandemia de Covid-19, reafirmando a atualidade e universalidade dessa obra de Camus. Pois estendemos que este livro de Albert Camus, é um símbolo dos nossos dias, da contemporaneidade.

Trataremos focalizar, pelos possíveis intercessores de A peste, como um romance histórico e alegórico, com base em Alluin (1996), Korichi (2008), Beauvoir (2000) e Lévi-Valensi (1991). Relacionando-se aos possíveis significados artísticos, alegórico-históricos e existenciais, centrar-se-á na recepção de A peste no Brasil, a partir das críticas literárias de Madaule (1948) e Nunes (1951).

O romance A peste também pode ser compreendido como expressão de uma literatura viral, por ser alegórica, pode transcender questões relativas ao contexto histórico em que surgiu, o pós Segunda Guerra Mundial, e ser relida, e atualizada, como possível expressão de novas circunstâncias históricas, como a da atual pandemia de Covid-19. Como afirma Calvino (2001, p. 11): “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Por essa definição, A peste situa-se como obra atemporal, universal e plurissignificativa, como um clássico.

A peste, segundo Bernard Alluin (1996), pode ser lida a partir de três perspectivas distintas, ou como um romance de três faces. Na primeira perspectiva, como um romance narrado em primeira pessoa, pode também ser classificado como uma crônica, na qual o narrador anônimo se revela ao final da obra, na personagem do Dr. Rieux: “Esta crônica chega ao fim. É tempo de o doutor Bernard Rieux confessar que é o seu autor.” (CAMUS, 1947, p.263. - tradução nossa) 

A segunda perspectiva de leitura seria a de um romance histórico, pois sabemos que A peste evoca o período da Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, e pode representar o poder dos nazistas na Europa, pois traz inúmeras referências e alusões aos debates político-ideológicos daquela época. “É verdade que A Peste foi muitas vezes interpretada como uma transposição da ocupação alemã da França e da organização da Resistência que se seguiu. A leitura alegórica era particularmente predominante na época da publicação do livro, logo após a guerra.” (KORICHI, 2008, p. 341. - tradução nossa)

Por fim, o romance traz uma abordagem filosófica sobre a condição humana, como uma obra que comporta um senso metafísico e moral, ao explorar a manifestação do “Mal” no mundo; o sofrimento do homem, em particular, o dos inocentes. 

Na crítica literária que escreve sobre este trabalho de Camus, Jacqueline Lévi-Valensi considera que A peste: “[...] aparece como um ponto de conclusão, como a coroação de um escritor e de uma obra que chegou a sua maturidade, e como o primeiro grande romance francês de imediato do pós-guerra.” (LÉVI-VALENSI, 1991, p.11. - tradução nossa) 

Esse livro conta o drama de uma população prisioneira na sua própria cidade, Oran, a mando do prefeito, que, tomando como justificativa a peste que assola a população local, despacha oficialmente um decreto sobre o fechamento da cidade: “No dia em que o número dos mortos atingiu de novo trinta, Bernard Rieux olhava o telegrama oficial que o prefeito lhe estenderá, exclamando: “Estão com medo!” O telegrama dizia: “Declarem o estado de peste. Fechem a cidade.” (CAMUS, 1997, p. 60)

Dessa forma, a população, aterrorizada, acompanha o destino trágico que leva à morte de seus familiares e amigos, sem nada poder fazer para ajudá-los. “Foi só com o tempo, ao constatar o aumento das mortes, que a opinião pública tomou consciência da verdade.” (CAMUS, 1997, p. 73)

Lévi-Valensi exemplifica possíveis interpretações alegóricas de A peste, no contexto da grande catástrofe do século XX, o holocausto:

A desumanização, simbolizada pela peste, e bastante conhecida na história do século 20, é vista através dos campos de concentração. Como os crimes contra a humanidade e o terror total. Alusões a campos de concentração, à deportação estão subjacentes a muitas páginas de A peste. Como poderia ser diferente, já que esses acampamentos foram a mais atroz e mais completa conquista do reinado do mal. [...] O romance não pode transpor o que não pode ser transmitido: Um romance sobre Auschwitz não é um romance, ou não é sobre Auschwitz’, repete Wiesel; o que, no entanto, é necessário transmitir... A peste evoca essa realidade impossível de imaginar e dizer, em menor, através dos campos de isolamento - pode-se reconhecer, no estádio onde estão instalados os campos descritos (CAMUS, 1947, p.215), uma lembrança do Vélodrome no inverno, onde em Paris, em 1942, milhares de judeus foram arrebanhados - em grande parte, pela visão recorrente dos fornos crematórios (CAMUS, 1947, pp.164-165,267,269), e pela profundidade alcançada, pela representação da separação, sofrimento e desumanização. (LÉVI-VALENSI, 1991, p. 69-70, tradução nossa)

A filósofa Mériam Korichi (2008, p. 341) remete-se a um trecho de uma carta de Simone de Beauvoir (1908-1986) para o escritor norte-americano Nelson Algren (1909-1981), de 13 de junho de 1947, na qual Beauvoir, ao abordar essa obra camusiana, já fazia referência ao seu caráter alegórico, pois representaria Paris ocupada pela Alemanha Nazista, durante a Segunda Guerra Mundial: 

[...] saiba que Camus, o autor de O estrangeiro, acaba de publicar um livro importante, A peste, em que trata da ocupação de Paris pelo exército alemão, sob o disfarce da história de uma epidemia de peste em Oran. Ele descreve a terrível moléstia, a solidão da cidade sobre a qual ela se abate por detrás das portas cerradas pelo medo do contágio, o medo de uns, a coragem de outros. Através de tudo isso, ele procura refletir sobre o sentido da existência humana, as razões, a maneira de aceitá-la. Eu não concordo inteiramente, mas ele maneja um belo francês e alguns trechos comovem e nos tocam o coração. (BEAUVOIR, 2000, p.28)

Assim, enquanto criação literária, a trama de A peste está situada na cidade de Oran, na Argélia, sitiada devido ao horror da epidemia. Em sentido alegórico, e histórico, como apontado por Simone de Beauvoir e por Lévi-Valensi, estaria se referindo à ocupação da França pela Alemanha Nazista, o que durou de 1940 a 1944, ou a toda a tragédia do holocausto. Poderia também se referir à ocupação da Argélia pela França.

Como representação alegórica atemporal, a cidade sitiada de A peste pode ser constantemente atualizada, como expressão das opressões provocadas pelas guerras contemporâneas, dos refugiados políticos acolhidos em acampamentos, e até mesmo do próprio lockdown provocado pelo coronavírus. Nesse sentido, o livro A peste pode ser considerado como exemplo de Literatura viral, aparecendo como uma narrativa em tempos de crise, ao tematizar contágios, epidemias e cenários apocalípticos, que podem evocar temores de ordem místico-religiosos. Tema este que ganha expressão em A peste, por exemplo, a partir do primeiro sermão do padre Paneloux, quando, no púlpito da igreja da cidade sitiada, cita a passagem do Êxodo, relativa à peste no Egito, para exortar os fiéis de Oran sobre a origem divina de seu próprio flagelo e de seu caráter punitivo:

Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes, [...] A primeira vez em que esse flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O Faraó opõe-se aos desígnios eternos, e a peste o faz então cair de joelhos. [...] Sabeis agora o que é o pecado, como o souberam Caim e seus filhos, os de antes do Dilúvio, os de Sodoma e Gomorra, Faraó e Jó e também todos os malditos. (CAMUS, 1997, p. 88)

Antes da publicação de A peste no Brasil, na tradução de Graciliano Ramos, o intelectual católico francês Jacques Madaule (1898-1993) escreveu uma crítica sobre A peste, que foi traduzida para o Suplemento Letras e Artes do jornal carioca A manhã e publicada em 18 de janeiro de 1948. O artigo de Madaule recebeu o título de O “best-seller” da França, no momento: “A PESTE”, DE ALBERT CAMUS. O crítico francês inicia sua escrita afirmando que: “[...] este livro deve ser considerado um dos mais importantes aparecidos de três anos para cá. De certo Albert Camus não era desconhecido.” (MADAULE, 1948, p. 3)

Na crítica de Madaule, além do drama existencial por ele ressaltado, nota-se a pertinência do caráter alegórico de A peste, como obra de arte capaz de expressar o sofrimento humano em circunstâncias históricas além daquela criada ficcionalmente por Camus:

Nosso mal, não é mais, realmente, um mal individual, uma dessas doenças que conservam o paciente no isolamento de um quarto fechado e de um sofrimento que ele não pode repartir com mais ninguém, atinge toda a coletividade. É [sic] Nossa doença é epidêmica: a terra hoje que se torna semelhante à Oran sobre a qual drapeja nossa bandeira negra. Reunidos, permanecemos, entretanto separados, isolados de uma parte essencial de nós mesmos, como esses habitantes de Oran que deixaram partir um ente querido no momento em que a cidade ia ser interditada. Entre a calamidade pública e os sofrimentos individuais, há sensivelmente, a mesma relação da peste que ruge por cima da cidade e os corações despedaçados por uma ausência. (MADAULE, 1948, p. 3)

Para Benedito Nunes, a peste que assola Oran um dia a abandona, porém ficará nos corações de cada homem e de cada mulher expressivamente, porque o flagelo os fez tomar consciência da própria liberdade, à qual deram sentido ao se engajarem para combater a peste. Mas, terminada a luta, a liberdade, agora consciente, fica sem objeto em que se engajar: “[...] a liberdade que os habitantes de Oran pensavam ter com o fim da epidemia, oprime tanto ou mais do que o próprio furor da terrível doença, porque ignoram o que fazer de si mesmos uma vez que não têm mais o que combater.” (NUNES, 1951, p.4)

Em outras considerações sobre a ordem incompreensível de A peste, Benedito Nunes afirma: “A peste é aqui a manifestação de um poder supremo, cujas determinações parecerão absurdas e desumanas se vamos apreciá-las sem ter o coração preparado pela Fé. Sísifo, ligado ao seu rochedo, não é reconfortado pela Esperança”. (NUNES, 1951, p.4)

Concluímos esta trabalho, percebendo que A peste, tem o poder de representar as realidades das atuais opressões de guerras, dos campos de refugiados políticos, dos governos totalitários e, até mesmo, do lockdown devido à pandemia do coronavírus, como já foi abordada acima sendo ela uma narrativa em tempos de crise, tendo relações de poder, de memórias e de representações ilimitadas no presente momento também.

A temática desse clássico é atualizada, no contexto da pandemia de Covid-19, por atitudes negacionistas de pessoas que rejeitam a ideia da peste, como o porteiro Michel, que será o primeiro a morrer na narrativa de Camus, ou daqueles que se recusam a interromper seus projetos de vida, assim como também aos governos, como a prefeitura de Oran em A peste, tardam a reconhecer o mal, ou nunca chegam a reconhecer sua intensidade, como vemos, por exemplo, no Brasil. 

As possibilidades de identificação entre o leitor atual e o drama existencial e coletivo ficcionalizado em A peste têm se revelado no substantivo aumento de vendas dessa obra na Europa e no Brasil. Em 12 de março de 2020, um dia após a decretação do estado de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o site da BBC News Brasil divulgava um incremento de 100% nas vendas de La peste, na França, nas primeiras oito semanas de 2020, e a entrada dessa obra na lista dos dez livros de ficção mais vendidos na Itália no mesmo período. Em 26 de março de 2020, escrevendo para o site da revista Cult, Raphael Luiz de Araújo, informava um aumento de 65% nas vendas de A peste no Brasil. Menos de quatro meses depois, em 17 de julho de 2020, Beth Koike, em matéria para o Valor econômico, informava um acréscimo de 3.900% nas vendas de A peste no Brasil. 

A peste encontrou seu lugar como crônica dos anos de 1940 na sociedade europeia, mas tornou-se também um espelho polido para o mundo contemporâneo, com suas tragédias humanas e flagelos naturais em tempos de muitos governantes imprevidentes.

REFERÊNCIAS
ALLUIN, B. La peste d´Albert Camus, Profil d’une oeuvre. Paris: Hatier, 1996.

ARAÚJO, R. L. de. “A peste” e o recomeço do olhar. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/a-peste-e-o-recomeco-do-olhar/. Acesso em: 05 set. 2020.

BEAUVOIR, S. Cartas a Nelson Algren - Um amor transatlântico 1947-1964. Tradução de Marcia Neves Teixeira e Antonio Carlos Austregesylo de Athayde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

CALVINO, I. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

CAMUS, A. A peste. Tradução de Valerie Rumjanek. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.

KOIKE, Beth. Vendas de livros clássicos sobre epidemias e distopias disparam. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/07/17/vendas-de-livros-classicos-sobre-epidemias-e-distopias-disparam.ghtml. Acesso em: 27 out. 2020. 

KORICHI, M. La peste d’Albert Camus. Texte intégral plus dossier et notes. Folioplus classiques. Paris: Gallimard, 2008.

LÉVI-VALENSI, J. Commente La peste d’Albert Camus. Paris: Gallimard, 1991.

MADAULE, J. O “best-seller” da França, no momento: “A PESTE”, DE ALBERT CAMUS. Suplemento Letras e Artes de A Manhã. Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1948, p.3.

NUNES, B.; AFONSO, J. Considerações Sobre A Peste. Suplemento Arte Letras da Folha do Norte, n. 165, Belém, 14 jan. 1951, p. 2-4.

Comentários

  1. Como "A Peste" testemunharia nosso presente momento de pandemia?
    Adriana do Socorro Serra Paiva de Moura

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  2. Entende-se que a obra A Pese de Albert Camus é uma literatura de cunho engajada e isto por causas humanistas e de denuncias, podendo ser a mesma um trabalho atemporal e isso no que tange a sua maior representação, tanto no passado relacionada a Segunda Guerra Mundial, como no presente, representada no combate do Covid 19, como uma das pestes a mais do século XXI. O romance A Peste testemunha junto ao seu autor das atrocidades de um passado de guerras, mortes, ocupações e destruições em massas.
    Hoje o mundo calamistrado ainda pelas guerras, mortes em um grande números de pessoas, outros em campus de refugiados e entre outras mais doenças, nos deparamos com a Covid 19, que em aproximadamente um ano de seu primeiro contagio desde de dezembro de 2019 já matou mais de um milhão de pessoas ao redor do mundo.As equipes sanitário de A peste de Camus se engajaram pela cura do homem, como vemos no romance. Hoje a OMS juntamente com os governos mundias se engajam pela busca imediata de uma vacina e tempo record.

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