O JORNAL ALTERNATIVO FÊMEA NA REVISÃO CONSTITUCIONAL
Oziel Washington David Moreira, PPGHIST/Unifesspa, Mestrando em História, contato: ozielwashington97gmail.com*
Eduardo de Melo Salgueiro, PPGHIST/Unifesspa, Doutor em História, contato: eduardomsalgueiro@gmail.com**
A “educação produz uma imagem feminina confinada em torno da família, situada num plano de desigualdade em relação ao homem, no poder, nas responsabilidades e nas opções de lazer e realização pessoal” (TEDESCHI, 2012, p. 38). Quando não são representadas, como guardiãs do víveres domésticos, a mulher é apresentada como amante, traidora ou por ter encantado/enganado com sua feminilidade/sensualidade os grandes homens. Apresentadas na história nunca como protagonistas, mas sempre como coadjuvantes de feitos masculinos, as mulheres, usando a feliz expressão de Michelle Perrot (2017), foram “excluídas da história”.
A autora destaca que em muitas sociedades, a “invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a garantia de uma cidade tranquila. Sua aparição em grupo causa medo” (PERROT, 2017, p. 17). No entanto, é em grupo que as mulheres vêm a público exigir por seus direitos e, quando isso ocorre, adjetivos pejorativos são utilizados para designá-las e desqualificá-las. As autoridades “falam de ‘megeras’ ou de ‘viragos’ (mulheres de aspecto e atitudes masculinizadas) para designar as manifestantes, quase sempre taxadas de ‘histéricas’ caso soltem o menor grito” (PERROT, 2017, p.21).
Com o desenvolvimento – de certa forma rápido – dos meios de comunicação (rádio, televisão, internet) o machismo acabou se espraiando na mesma velocidade; assim os meios midiáticos são grandes propagadores de pensamentos machistas, racistas, homofóbicos etc., contudo, não foram só os grupos dominantes que usaram/usam a imprensa pra propagar suas ideias, ela também foi utilizada como porta voz das minorias excluídas pela sociedade, como foi o caso das mulheres.
Durante a década de 1970, as mulheres perceberam que havia se tornado premente a necessidade de “criar um discurso próprio, capaz de fazer questionamentos e promover mudanças” (WOITOWICZ; PEDRO, 2010, p. 1) é com tal pensamento que as organizações feministas criaram a partir daquela década uma serie de jornais, como o: Mulher (1975-1979), Nós Mulheres (1976-1879), Mulherio (1981-1987), o jornal Fêmea (1992-2014) etc., para “dar voz” e mobilizar às mulheres na defesa dos seus direitos e na conquista da cidadania. Dessa forma, foram surgindo novos espaços de comunicação alternativa, que as organizações feministas utilizaram como forma de recriação da identidade da mulher na sociedade (BASTERD, 1983).
A comunicação alternativa buscou encontrar canais para um discurso que deveria transitar pela margem da comunicação de massa, ao caminhar pelas bordas, tal comunicação se tornaria alternativa, já que lançaria mão de distintos meios e formas de comunicação.
Coadunada a comunicação alternativa, têm-se “mídia alternativa”, ela contemplaria não só o “aspecto de oposição política, mas também outras expressões – por vezes menos ‘combativas’ – de diferentes grupos sociais que buscam manifestar ideias, projetos e lutas por meio da comunicação” (WOITOWICZ; PEDRO, 2010, p. 2). Tal produção surge com um caráter contra hegemônico, buscando se diferenciar dos meios tradicionais de comunicação, diferindo-se principalmente no que se refere às suas formas de produção, circulação e consumo, assumindo assim características próprias diante do discurso dominante.
A partir das lutas das feministas (contra o discurso machista, hegemônico) e em prol da garantia e reconhecimento de seus direitos perante a sociedade, foi criado no final dos anos de 1980 e início da década de 1990, dois importantes veículos de luta em defesa dos direitos das mulheres: o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), criado em 14 de julho de 1989 e o jornal Fêmea, criado em 1992.
CFEMEA e o Jornal Fêmea
O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, fundado no ano de 1989, tendo sua sede em Brasília-DF. Conforme informações retiradas da página online desta ONG, o feminismo, “os direitos humanos, a democracia e a igualdade racial são nossos marcos políticos e teóricos” (CFEMEA, 2018, s/p). O Centro é parte da geração de organizações feministas da década de 1980 que lutaram pelo processo de redemocratização do Brasil, “propondo leis e políticas públicas, em uma atuação que está na origem do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)” (CFEMEA, 2018, s/p).
Já a partir de sua criação, o CFEMEA tornou-se um “catalisador” político, mantendo diálogos com os (as) parlamentares acerca das demandas feministas em contexto nacional. Por contar inicialmente com parcos recursos, a marca inicial da presença do Centro no Congresso Nacional se deu a partir de um trabalho militante, contando com a adesão de colaboradores do meio acadêmico e do ativismo político.
No ano de 1992, o CFEMEA expandiu suas atuações, buscando atingir o maior número possível de organizações feministas e entidades que militavam em defesa das demandas das mulheres. Assim, a organização lançou o jornal Fêmea. Editado mensalmente e distribuído de forma gratuita, ele oferecia um balanço periódico das discussões legislativas que beneficiariam ou prejudicariam as mulheres naquele contexto.
O Fêmea teve sua produção voltada para a ação política, buscando disseminar propostas, ideias, conceitos e questões que contribuiriam “para o aprimoramento e a renovação de propostas e discursos políticos sobre a condição da mulher” (MELO, 2003, p. 298). A linha editorial daquele periódico esteve vinculada com os objetivos do CFEMEA, tais propósitos concerniam à “comunicação sobre os direitos das mulheres e igualdade de gênero, visando socializar e democratizar as informações referentes ao Legislativo à luta feminista, inclusive junto aos meios de comunicação de massa (BARBOSA, 2004, p. 14, Grifos da autora)”.
Apesar de dirigido a todos (as) os (as) parlamentares federais, buscando informar e dar visibilidade as lutas feministas, o Fêmea atingia grupos diversificados e em distintas regiões do país. Essa diversificação de entidades que recebiam as edições do jornal, possibilitou que informações sobre as demandas legislativas e as discussões feitas no âmbito do Congresso Nacional concernentes às mulheres fossem democratizadas, atingindo desta forma um maior público. Todavia, sua principal atuação como ator/articulador político, se deu durante a revisão constitucional.
O Fêmea na revisão: breve contextualização
Muitos grupos se posicionaram contra a revisão, em virtude de estar ocorrendo, naquele contexto, um escândalo de corrupção causado pelas investigações da CPI do Orçamento. A revisão foi anunciada e o Fêmea não tardou em destacar que as organizações feministas estavam preparadas e organizadas para atuar e intervir no Congresso revisor. O jornal convocou reuniões com entidades feministas e parlamentares simpatizantes da causa da mulher, para que estratégias fosse traçadas com a finalidade de coibir possíveis alterações em leis que versavam acerca dos das mulheres.
O Fêmea mostrou-se atuante no que diz respeito a revisão constitucional, identificando entre as 17.256 propostas revisoras, 956 que afetavam diretamente a mulher, elas se referiam: a redução da licença-maternidade, extinção da licença paternidade, aumento dos prazos para a aposentadoria da mulher, controle de natalidade, proibição do aborto nos casos permitidos em lei, entre outras.
Os movimentos de mulheres organizados pelo CFEMEA, articularam-se com os (as) parlamentares para propor emendas supressivas, para todas as propostas que ameaçavam os direitos da mulher. Grande parte das supressivas assessoradas pelo Centro e apresentadas pelos (as) parlamentares foram aceitas. Aquela organização, juntamente com o coletivo de mulheres e parlamentares conseguiram impedir que a onda conservadora congressista não retrocedesse em relação à revisão dos direitos da mulher.
Durante o Congresso Revisor, foram aprovadas apenas seis emendas das milhares de
propostas apresentadas. Foi somente no mês de abril de 1994, que o Congresso obteve
quórum para a aprovação das propostas. De acordo com o Fêmea, essa “abstenção” representava o pensamento político dos (as) parlamentares que estavam receosos em
modificar a Carta de 1988 (Fêmea, Ano III, nº 15, maio de 1994, p. 2). Entre as propostas aprovadas na revisão, estavam: a permissão para dupla nacionalidade; novas exigências para eleger candidatos, levando em conta sua vida pregressa; redução de mandato presidencial de cinco para quatro anos, entre outros.
A Revisão encontrou o seu fim, morrendo paulatinamente “pela falta de quórum, pela
obstrução dos ‘contras’ e pela incapacidade de definir uma agenda mínima de trabalho” (Fêmea, Ano III, nº 15, maio de 1994, p. 11). Mesmo tendo um trabalho módico, representou uma grande ameaça aos direitos da mulher garantidos na Constituição de 1988, que graças aos movimentos feministas e sua pressão política não obterem êxito. Como na Constituinte que contou com participação de grupos organizados de mulheres, lutando em prol da inserção dos seus direitos no futuro texto constitucional, no período revisional ocorreu o mesmo
Considerações Finais
O Fêmea foi o jornal feminista de maior duração e circulação no Brasil (1992-2014). Buscava “abranger uma gama muito extensa de temas da agenda dos movimentos feministas”, o que de fato conseguiu. Suas publicações encerraram-se em dezembro de 2014, segundo o editorial de sua última edição, a partir de 2015 o CFEMEA orientaria sua organização para a “sustentabilidade do ativismo”.
O jornal proporcionou que grupos distintos com relação a objetivos e temáticas, formados por: mulheres negras, lésbicas, sindicatos e centrais sindicais, universidades, partidos políticos, grupos de empregadas domésticas, entre outros, ficassem informados (as) sobre as tramitações legislativas que ocorriam no Congresso.
Durante o processo Revisor da Constituição, o Fêmea não hesitou juntamente com outras entidades em mobilizar os movimentos feministas e simpatizantes, para que fossem organizados encontros para planejar a participação das organizações feministas na Revisão.
A Revisão foi decadente desde o seu início, advindo alguns dias após a um escândalo de corrupção, aquele processo não era bem visto pelos grupos políticos e sociais de esquerda, “apenas” as alas conservadoras pareciam estar dispostas leva-la adiante. Com o início dos trabalhos, temendo um recrudescimento conservador, que poderia acarretar um retrocesso com relação aos direitos da mulher, foi organizado uma mobilização dos movimentos feministas em caráter nacional. As organizações de mulheres pressionando as (os) parlamentares conseguiram que os seus direitos fossem mantidos/regulamentados e não revisados.
*Graduado em História pela Unifesspa/IETU-Xinguara, mestrando em História pela mesma instituição.
**Graduado em História pela UEMS, mestre e doutor em História pela UFGD. Professor do quadro efetivo do curso de História da Unifesspa/IETU-Xinguara.
FONTES
CFEMEA. Nasce o CFEMEA – 1989. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/index.php/plataforma-25-anos. Acesso em: 23 fev. 2020.
______. Primeiros desafios – 1990. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/index.php/plataforma-25-anos. Acesso em: 23 fev. 2020.
______. Quem Somos. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/index.php/cfemea/quem-somos. Acesso em: 23 fev. 2020.
Fêmea, Ano III, nº 15, maio de 1994.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Michelle Cristiane L. Publicações Feministas do CFEMEA: análise de conteúdo do Jornal Fêmea. Estudos Feministas, Florianópolis, 12(N.E.): 264, setembro-dezembro, 2004.
BASTERD, Leila. “Comunicação: é falando que a gente se entende”. In: PROJETO MULHER. Mulheres em Movimento. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero: Instituto de Ação Cultural,1983
MELO, Jacira. Publicar é uma ação política. Estudos Feministas, Florianópolis, 11(1): 336, jan-jun/2003.
PERROT, Michelle. Os Excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2017.
TEDESCHI, Losandro. As Mulheres e a História: uma introdução teórico metodológica. Dourados – MS: Ed. UFGD, 2012.
WOITOWICZ, Karina; PEDRO, Joana. Feminismo e Ativismo Midiático: o jornalismo como estratégia de ação política. Fazendo Gênero 9, 23 a 26 ago. 2010, p. 1-10.
Boa tarde, Oziel. Gostei muito da abordagem da sua pesquisa.
ResponderExcluirGostaria que você falasse um pouco como chegou a ela. Pesquisa desde a graduação? Como foi a "descoberta" e escolha das fontes?
Lizandra Júlia Silva Cruz.
Olá, Lizandra. O trabalho com o Fêmea se iniciou na minha graduação, naquele período participei de um curso de extensão acerca da história da e por meio da imprensa. O docente que o ministrava, tinha um projeto de preservação e digitalização do acervo da Comissão Pastoral da Terral - CPT/Xinguara, sabendo do meu interesse em pesquisar o movimento feminista, em uma conversa informal ele me informou que na CPT havia alguns exemplares de um jornal feminista. Contudo, esses exemplares eram poucos, felizmente, tive a sorte de encontrar todas as edições do Fêmea digitalizadas no site da ONG responsável por sua publicação.
ExcluirDessa forma, selecionei para analisar os exemplares que discutiam a participação dos movimentos feministas em defesa dos direitos das mulheres durante a revisão constitucional, publicados entre os anos de 1992 e 1994, consequentemente esse período foi o recorte temporal.