REPRESENTAÇÕES DE SOCIEDADES EM CRISE NO ROMANCE DOM QUIXOTE, DE MIGUEL DE CERVANTES E NA OBRA CINEMATOGRÁFICA ELE ESTÁ DE VOLTA, DE DAVID WNENDT
Marina Cardoso de Melo, Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, mestranda, Universidade Federal de Viçosa. marina.melo@ufv.br.
Angelo Adriano Faria de Assis, Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários, orientador, Universidade Federal de Viçosa. angeloassis@ufv.br.
A publicação de Dom Quixote, ocorrida no início do século XVII, coincidiu, na Espanha e em toda a Europa, com um período de crise não apenas econômica, mas também social, que, em âmbito intelectual, culminou no surgimento do Barroco. Em relação aos eventos que se desenrolavam nesta época, Maravall (2009, p.70-71) pontua:
“as crises sociais são processos que alteram profundamente o estado social de um povo. Um desses casos foi, precisamente, a cultura do Barroco, nascida das circunstâncias críticas nas quais se encontravam os povos europeus, devido a causas econômicas que por diversas vezes se alteraram ao longo do século, mais frequentemente com caráter desfavorável, e também a uma série de “novidades”, empregando a linguagem da época, que a técnica, a ciência, o pensamento filosófico, a moral e a religião trouxeram, por sua vez, como contribuição. Isso tudo sem ignorar que a própria economia se encontra entrelaçada a motivações ideológicas, cuja ação e reação diante das transformações estruturais – que, em parte pelo menos, se produzem no século XVII – obrigam o historiador a falar de uma nova época.”
Assim, o engenhoso fidalgo retratado pela obra de Cervantes originou-se do caos social, apresentando diversas características típicas da corrente intelectual surgida à época, que em contraposição ao otimista e ordenado Renascimento, se mostrava o reflexo de uma sociedade marcada por contrastes, tensões e pelo pessimismo em relação à desordem que no momento a cercava e absorvia. Talvez por isso Dom Quixote tenha como uma de suas principais características o conflito entre diversos pontos de vista apresentados por um narrador que procura não se posicionar, deixando tal tarefa à mercê do leitor, que, nesse sentido, possui a liberdade de compreender os enredos presentes no romance conforme sua própria visão de mundo. Já no primeiro capítulo da obra cervantina nos deparamos com a informação de que o protagonista teria incorporado Dom Quixote após perder o juízo em meio às extensas e ininterruptas leituras das novelas de cavalaria, como fica explícito no seguinte trecho:
“Sua imaginação se encheu de tudo aquilo que lia nos livros, tanto de encantamentos como de duelos, batalhas, desafios, feridas, galanteios, amores, tempestades e disparates impossíveis; e se assentou de tal modo em sua mente que todo aquele amontoado de invenções fantasiosas parecia verdadeiro: para ele não havia outra história mais certa no mundo” (CERVANTES, 2012, p.63).
Nascido então do devaneio de um homem simples, de poucas posses, mas de muitos livros, Dom Quixote representa a ruptura de seu criador com a realidade que, para ele, já não seria satisfatória e à qual este já não conseguia se adequar. Assim ele sai como cavaleiro andante atrás de aventuras, exércitos e gigantes contra quem combater em nome de sua amada e idealizada Dulcineia, encontrando então Sancho Pança, a quem convence de acompanhá-lo em troca do governo de uma ilha inteira apenas para ele. Como marca dos contrastes apresentados pela obra, podemos pontuar que um dos maiores exemplos consiste na relação estabelecida entre Dom Quixote e Sancho Pança, seu fiel escudeiro.
Apesar de acreditar na promessa de Dom Quixote, o comportamento e apreensão da realidade apresentados por Sancho a partir então demonstram o quanto se distingue de seu amo, algo evidenciado em diversos momentos da primeira parte do romance, como, por exemplo, no episódio da batalha contra o rebanho de ovelhas. A partir do som de cascos e da poeira levantada, Quixote acredita virem em sua direção dois exércitos que se enfrentam, descrevendo em detalhes os cavaleiros, os cavalos e os motivos do conflito. Sancho, que em princípio corrobora a percepção de seu amo, instantes depois interpreta o que vê Dom Quixote de modo diferente. Não se trata de dois exércitos inimigos, mas de um rebanho de ovelhas, entretanto o fidalgo não dá crédito a seu criado, julgando-o medroso, e parte para o combate sozinho. Delira Dom Quixote ou apenas evidencia a ambiguidade que é própria da realidade e dos pontos de vista que destoam entre si? Em verdade, Dom Quixote nada mais é que coerente com a realidade de sua visão de mundo.
Há então um paradoxo entre os dois personagens. Enquanto Dom Quixote com sua crença fiel de que é um cavaleiro andante tal qual os que protagonizam as novelas de cavalaria que leu sem descanso, representa o idealismo, Sancho Pança é, nesta primeira parte, o retrato do realismo. Entretanto, na segunda parte do romance, na qual Dom Quixote já foi transformado em livro e todos os personagens já o leram, ocorre uma interessante inversão, ao passo que tais personagens se esforçam para transformar a realidade do fidalgo para que ele acredite ser o cavaleiro andante que conheceram através dos episódios narrados pela obra sobre ele. Nesse sentido, Sancho é o principal responsável pela tentativa de recriar a realidade de Dom Quixote. Auerbach (2015, p.303) pontua esta característica quando analisa o episódio da Dulcineia encantada:
“[...] pela primeira vez os papeis estão trocados: até ali era Dom Quixote que compreendia espontaneamente e transformava as aparições da vida quotidiana com que se deparava, segundo o sentido dos romances de cavalaria, enquanto Sancho em geral duvidava ou retorquia ou tentava evitar as absurdas ações do seu amo; agora é o contrário, Sancho improvisa uma cena de romance, enquanto que a capacidade de Dom Quixote de transformar os acontecimentos segundo a sua ilusão falha diante da crua vulgaridade do aspecto das lavradoras. Tudo isto parece ser altamente significativo; tal como nós o apresentamos aqui (propositadamente), parece triste, amargo e quase trágico.”
O que fica evidente a partir da narrativa é que a realidade é ambígua e, ainda que cada um de seus personagens a interprete de acordo com a visão de mundo que possui, algo que provoca inúmeros paradoxos e dicotomias quando estabelecida as comparações entre elas, todas são coerentes com a perspectiva de seu responsável. Dom Quixote acredita ser um cavaleiro andante durante grande parte da história, desse modo, ao interpretar bacias como elmos, moinhos de vento como gigantes e rebanhos de ovelhas como exércitos, está sendo coerente com aquilo que acredita ser. Sancho Pança é um campesino e, ao interpretar rebanhos de ovelhas apenas como rebanhos de ovelhas, também é coerente com sua experiência de mundo. O barbeiro ao interpretar a bacia como uma bacia e não como um elmo, como afirma Dom Quixote, está sendo coerente com o ofício que desempenha.
Afinal, o que importa é que, em Dom Quixote, a coerência prevalece, ainda que diversos paradoxos e ambiguidades passem a existir a partir dela. Assim, Kundera (2009) considera Cervantes um dos fundadores dos tempos modernos justamente por ter empreendido o resgate do ser do homem esquecido pelas ciências. É o ser de cada personagem que define sua perspectiva de realidade, e é o ser de cada leitor que define como interpreta e responde às questões colocadas pelo romance.
Assim como Dom Quixote nasceu de uma sociedade em crise, o Hitler de Ele Está de Volta renasce de um contexto social de caos que não se restringe ao âmbito europeu. Iniciada pela crise imobiliária estadunidense de 2008, que refletiu catastroficamente em grande parte das economias ao redor do mundo, a crise social que vivenciávamos em 2011, quando Timur Vermes publicou o livro Ele Está de Volta, perdurou até 2015, quando o filme homônimo e inspirado na obra do escritor alemão foi lançado e, analisando nossa atualidade, parece estar longe do fim. Percebendo que a Segunda Guerra Mundial consistiu em “uma perda de tempo”, em suas palavras, para a concretização de seus propósitos, Hitler vê na televisão o meio ideal para a disseminação de suas ideias entendidas inicialmente como piadas, mas rapidamente difundidas entre grande parte da sociedade alemã que vê em seu discurso o reflexo daquilo que almeja.
A passagem de Hitler pelo século XXI é acompanhada pelo fracassado jornalista Fabian Sawatzki, que desempenha o papel de seu fiel escudeiro, bem como Sancho Pança o era para Dom Quixote. Sem conseguir uma boa história para manter seu emprego em uma rede de televisão, Sawatzki vê naquele que julga como um humorista que representa o ditador alemão e nunca sai do personagem como uma grande oportunidade de emplacar uma boa matéria e provar que consegue fazer seu trabalho com qualidade. O jornalista e a personificação de Hitler saem então em turnê pela Alemanha, interagindo com pessoas que não fazem parte do elenco do filme, ou seja, espectadores reais. Assim como existe a dicotomia entre as percepções de Sancho e Dom Quixote sobre o mundo, Sawatzki e Hitler também interpretam a realidade de forma distinta, enquanto o jornalista enxerga apenas uma encenação inocente e engraçada que pode lhe trazer vantagens financeiras e profissionais, Hitler pretende reconstruir o Terceiro Reich.
Durante a uma hora e cinquenta e seis minutos de duração do longa-metragem, apenas duas das pessoas “comuns”, isto é, aquelas que não desempenhavam papeis ficcionais no filme, que interagem com a personificação do idealizador do extermínio massivo de judeus e outras minorias no século XX, se indignam ao se deparar com sua figura caminhando casualmente pelas ruas de diversas cidades alemãs. Também como em Dom Quixote, realidade e ficção se confundem em Ele Está de Volta, já que a produção do filme mescla a encenação do ator, até então desconhecido, que interpreta Hitler com a reação de espectadores reais não apenas depois do lançamento, mas também durante as filmagens. Desse modo, a ambiguidade se produz ao longo de todo o processo de montagem da obra cinematográfica.
Nesse contexto, a grande questão colocada pelo filme não está em se é mesmo Hitler que, em princípio, acorda no local em que seu búnquer estava localizado, parecendo retornado do inferno, ou se se trata apenas de um ator que enlouqueceu e acredita piamente que o é, mas em como a sociedade alemã do século XXI reage a tal figura. E, além da sociedade alemã, o ponto chave da obra está em como nós, espectadores de qualquer outra parte do globo terrestre, reagimos e interpretamos a trama que se desenrola em Ele Está de Volta.
Das similaridades que podemos encontrar entre Dom Quixote e o filme Ele Está de Volta, além dos paradoxos, da ambiguidade e do fato de serem narrativas que surgiram em tempos de crise social, podemos citar também os elementos ficcionais que aparecem dentro da ficção e a multiplicidade de leituras que podem ser feitas a partir de seus enredos. No filme em questão, Hitler escreve um livro contando sobre sua passagem pelo século XXI, que é homônimo ao filme e ao livro que de fato o inspirou. Na trama retratada pelo longa, tal qual o que ocorreu na realidade prática, a obra literária foi adaptada para o cinema.
Miguel de Cervantes, por sua vez, escreve Dom Quixote, mas não é ele quem o cria, mas Alonso Quixano, que por meio das leituras de novelas de cavalaria transforma a própria vida na ficção de cavaleiro andante. Além disso, Cervantes se torna personagem quando seu livro La Galatea é citado e criticado por um dos personagens que diz conhecê-lo. O autor se distancia da obra, bem como de sua narração, ao criar um narrador irônico e afirmar ao longo da trama que não foi ele quem a escreveu de fato, pois aquele seria um livro originalmente escrito em árabe, cuja tradução é atribuída a um terceiro. Na segunda parte, quando Dom Quixote se descobre lido, a história citada não é a escrita por Cervantes, mas por Cide Hamete Benengeli. Além disso, a história do “Curioso Impertinente”, lida pelo padre aos hóspedes da estalagem em que Dom Quixote e Sancho se encontram consiste em um componente aparentemente sem relação com o romance em si. Nesta narrativa, enquanto Lotário e Anselmo, dois dos protagonistas, conversam, um deles cita um soneto de amor, concretizando outra forma fictícia dentro da narrativa ficcional incluída no romance.
Tem-se assim, tanto em Dom Quixote quanto em Ele Está de Volta um jogo de espelhos em que a ficção é retratada dentro da ficção e se confunde com a realidade, criando tanto o distanciamento dos autores quanto a ambiguidade que deve ser interpretada pelo espectador/leitor das obras. Logo, abre-se a possibilidade para que diversas interpretações distintas sobre as obras sejam feitas. Em Dom Quixote as principais consistem na cômica, resultante das trapalhadas em que se metem o cavaleiro andante e Sancho Pança, frequentemente difundida nos primeiros anos após sua publicação, e a interpretação romântica que vê uma grande tristeza na loucura de Dom Quixote e em como esta é tratada pelos demais personagens.
Já em Ele Está de Volta há também a possibilidade da interpretação cômica, afinal o Hitler do século XXI passa por situações que podem ser consideradas engraçadas e o tom de sátira é evidenciado até mesmo pela trilha sonora escolhida. No entanto, no decorrer da trama, a constatação de que o discurso do ditador seria facilmente aceito pela sociedade contemporânea cria a sensação de que não estamos em tempos seguros e de que o filme poderia ser um prenúncio do que surgiria nos anos posteriores, uma vez que, na contemporaneidade, cada vez mais representantes posicionados à extrema direita do espectro político, apresentando discursos ultranacionalistas, xenófobos e de cunho altamente conservador têm ascendido ao poder em diversos países não só da Europa, mas de países como os Estados Unidos e o Brasil.
Nesse sentido, é possível ter a sensação de que o narrador nazista de Borges (1999) no conto “Deutsches Requiem” possui certa razão ao concluir que, em breve, o mundo estaria repleto de pessoas como ele, ou seja, pessoas que veem o mal e a violência como a única lógica de mundo possível. Não porque o nazismo ou qualquer outra ideologia ultraconservadora tenha criado a maldade, mas porque é esse o tipo de discurso que incentiva que os indivíduos externem seus pensamentos mais horrendos, compreendendo-os como defesa a seu status quo ameaçado por questões de classe, nacionalidade, gênero, raça, sexualidade ou qualquer outro grupo minoritário.
Por outro lado, ainda que Eichmann em Jerusalém de Hanna Arendt (1999) não consista em uma obra ficcional, esta descreve outra forma de interpretar a realidade, oposta, mas também complementar à do nazista criado por Borges (1999), que defende e justifica sua ideologia até o fim da vida. Tal visão de mundo banaliza o mal em nome questões de ordem burocrática ou legal, praticando-o ou chancelando-o de forma quase inconsciente, apenas seguindo uma corrente que define atos nefastos como meio para manutenção da ordem social tão almejada em tempos de crise. Afinal, como Borges pontua em outro de seus contos, basta “qualquer simetria com aparência de ordem [...] para encantar os homens” (BORGES, 1999, p.16).
Referências Bibliográficas
ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
AUERBACH, Erich. “A Dulcineia Encantada”. In: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2015.
BORGES, Jorge Luis. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”. In: Ficções. Rio de Janeiro: Editora Globo S.A., 1999.
__________________. “Deutsches Requiem”. In: O Aleph. Rio de Janeiro: Editora Globo S.A., 1999.
CERVANTES Saavedra, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. 1.ed. Vol. 1 e 2. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.
ELE Está de Volta (Er Ist Wieder Da). Direção de David Wnendt. Berlin: Mythos, 2015. (116 min).
KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
MARAVALL, José Antônio. “A consciência coetânea de crise e as tensões sociais do século XVII”. In: A Cultura do Barroco: Análise de uma Estrutura Histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
VERMES, Timur. Ele está de volta. São Paulo: Intrínseca, 2014.
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