RESISTÊNCIA ATRAVÉS DA ESCRITA: IMPRESSÕES INICIAS DA LUTA ATRAVÉS DA ESCRITA DE LUIZ GAMA
Lizandra Júlia Silva Cruz (autora) – PPGHIST – Mestranda – UNIFESSPA –lizandra.julia@unifesspa.edu.br
Maria Clara Sales Carneiro Sampaio (coautora) – PPGHIST – Doutora – UNIFESSPA –mclarasampaio@unifesspa.edu.br
O presente trabalho busca apontar alguns aspectos iniciais da pesquisa que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, dentro da linha de pesquisa Cultura, Memória e Relações de Poder. Importante frisar que esta encontra-se em fase inicial e tem o objetivo de realizar uma análise dos livros Primeira Trovas Burlescas de Getulino e outros poemas de Luiz Gama e Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro, organizados pela professora e crítica literária Lígia Fonseca Ferreira. A primeira obra foi publicada pela primeira vez em 1859, juntamente com alguns dos diversos poemas de autoria de Gama que, circularam pela sociedade aristocrática e escravista em jornais entre 1859 e 1882 (ano do falecimento de Gama) e a segunda foi organizada pela autora em 2020 com artigos de jornais e foram responsáveis por evidenciar e fincar um novo lugar do negro nessa sociedade, o negro autor.
Como traça Ferreira (2011) com suporte de uma Carta (1880) escrita por Gama a seu amigo Lúcio de Mendonça, este era negro, nascido em Salvador, no ano de 1830, filho de uma africana livre e pai fidalgo português, era livre, mas foi “colocado” em condição de escravo pelo próprio pai aos dez anos de idade. Luiz Gama empreendeu uma prodigiosa caminhada que perpassa por questões que à época não era possível aos escravizados e aos libertos, como por exemplo, a conquista de conhecimento e letramento e, consequentemente, de sua liberdade e ascensão ao mundo das letras, poesias, direito e jornalismo.
A contrapelo – termo cunhado por Walter Benjamin em sua VII tese contida no trabalho “Teses sobre o conceito de história (1940) ” – do que a sociedade impôs aos negros e negras nesse período, Gama começou a construir sua inserção no “mundo das letras” e da elite intelectual da época, composta por homens brancos da alta classe do Império, como José Bonifácio (que se tornaria amigo de Luiz Gama) e Joaquim Nabuco.
Esta inserção e primeira “grande manifestação pública de Luiz Gama” (AZEVEDO, 1999, p. 30) é representada pela publicação de seu único livro o “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”, publicado em 1859 e foi “[...] um instrumento que deu vazão, dentro do mundo letrado, aos seus primeiros posicionamentos políticos diante das relações raciais que se davam sob a égide da escravidão” (AZEVEDO, 1999, p. 31). Na esfera pública, o ex-escravizado rompe várias barreiras com esta obra e encarna “um contra-exemplo das crenças pseudo-cientifícas de seu tempo, segundo as quais os negros não eram capazes de compreender ou produzir as belas coisas do espirito” (FERREIRA, 2011, p. 17).
Tornou-se autor de sátiras sociais e políticas, famoso rábula dos escravos, republicano contundente, defensor da Justiça e do Direito, exímio poeta e redator de jornais onde suas inquietações e críticas ganharam popularidade, para além da província de São Paulo. Dono de múltiplas facetas – este termo foi cunhado pela doutora e crítica literária Lígia Fonseca Ferreira – Luiz Gama “perturbou” o sistema político-social em que estava inserido e franqueou novos espaços que nunca estiveram reservados aos negros, ainda mais aqueles que tinham vindo da experiência do trabalho escravo.
Luiz Gama fincou “uma voz inaugural na literatura brasileira, a voz do negro ‘autor’ que surge como novidade em si” (FERREIRA, 2011, p. 18) e também se constituiu como
O autor de sátiras sociais e políticas, o redator de jornais e periódicos políticos, o advogado dos escravos, o combativo antimonarquista, o popular conferencista, o leal membro da maçonaria, o defensor do direito a partir dos anos 1860 também se distinguiria pela eloquência tanto por via de sua palavra falada como de sua palavra escrita (FERREIRA, 2011, p. 18).
No percurso de sua trajetória Gama foi partícipe em diversos meios que possibilitaram o desenvolvimento de sua carreira intelectual, versou na esfera pública, no meio jurídico, nas esferas da produção literária e editorial. Inserido numa sociedade aristocrática e com um arraigado sistema escravista que vigorava veementemente, Gama foi um exímio crítico e combativo dessas questões.
Diante de tantas possibilidades de pesquisa e com a consciência de limitações de uma pesquisa de mestrado foi realizado um recorte temático e temporal. O tema problema escolhido para esta pesquisa é, com os suportes reflexivos de autoras como a professora e crítica literária Lígia F. Ferreira e a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, de que maneira os escritos de Luiz Gama, mais especificamente os poemas que compõe o Primeira Trovas Burlescas e alguns dos poemas que estiveram presentes em periódicos entre os anos de 1859 e 1882 que estão tanto no referido livro como no livro Lições de resistência ironizam os costumes sociais da época e, além disso, exaltam a figura do negro e negra e a África.
Dito isto, essa pesquisa se coloca como uma possibilidade de evidenciar uma das tantas facetas de Luiz Gama, o literato, que em seus escritos aponta para aspectos dessa sociedade e também de uma escrita de si. Esta faceta que, acabou relegada a segundo plano quando Gama tornou-se o famoso “advogado dos escravos”, foi fundamental para colocá-lo dentro do mundo letrado e revelar a elite da época seus posicionamentos políticos antimonárquicos e antiescravistas que foram fundamentais para as lutas pela liberdade no Brasil do século XIX.
Diante dessa perspectiva de lutas pela liberdade no Brasil do século XIX e a influência de Gama sobre tal debate, um dos pontos fundamentais desta pesquisa é a busca por evidencias que demarquem a existência – ou não – de ligações e/ou influências do movimento abolicionista do eixo São Paulo – Rio de Janeiro e o oposto – ecos do movimento da região Norte nesse eixo – na construção dos diversos movimentos pela abolição no Grão-Pará. A formação de um movimento de libertação de escravizados e escravizadas na Província do Grão-Pará tem seu início marcado pela localidade de Benevides, como aponta a doutoranda Ana Carolina Trindade Cravo, e foi fundamental para que o movimento ganhasse força e contribuísse para que esta Província se tornasse “[...] uma das pioneiras da região Norte a lidar com a resolução da liberdade cativa” (CRAVO, 2020, p. 318).
Esse movimento, em parte, encabeçado pela Sociedade Libertadora Benevidense foi importante para reger os diversos contornos que a luta pela abolição acabou gerando dentro da Província, “sendo num primeiro momento um exemplo a ser seguido para noutro representar grande perigo à ordem e a paz social” (CRAVO, 2020, p. 307). Estes contornos e os movimentos externos que os processos de abolição sofreram no Grão-Pará são partes da preocupação de análise desta pesquisa.
Nossas análises partem do princípio que nos séculos em que prevaleceu a escravidão no Brasil foram marcados por uma acentuada diversidade de movimentos de resistência surgidos desde o período colonial, o que nos leva a perceber e descontruir a imagem cristalizada de que escravizados e escravizadas foram sujeitos passivos dentro da realidade escravista, visto que em suas estratégias estes buscavam maneiras diversas de conseguir sua autonomia e resistir a imposição do sistema escravistas. Assim sendo, Maria Helena Pereira Toledo Machado (1980) aponta que:
Conceitos com os de resistência e autonomia entre escravos têm sido reiteradamente apontados como núcleo centrais para a reconstituição de uma história preocupada em reverter perspectivas tradicionais e integrar os grupos escravos em seus comportamentos históricos, como agentes efetivamente transformadores da instituição. (MACHADO, 1988, p. 146)
Dentro da atuação de Gama nas lutas contra o sistema político-social vigente, é possível perceber que estas não ocorreram apenas nas sátiras escritas para os jornais, este tornou-se conhecido e reconhecido principalmente por sua atividade na esfera jurídica. Para citar apenas um exemplo, em janeiro de 1870, como “advogado provisionado”, onde este possuía uma autorização, “uma provisão expedida a pedido do pretendente que o tornava habilitado legalmente para o exercício da profissão” (SANTOS, 2014, p. 42), concorreu para a libertação de 42 escravizados em Jundiaí, aumentando e fixando sua fama como “libertador de escravos” (FERREIRA, 2011, p. 27). Essa imagem de libertador e grande abolicionista acabou por cristalizar uma única “versão” de Gama, onde sua única atuação estaria condicionada as tribunas e a jurisdição, invisibilizando um Luiz Gamas com diversas facetas e que se constituiu dentro de um “[...] universo polarizado, de negros versus brancos” (AZEVEDO, 1999, p. 27).
Dentro dessas primeiras análises é possível perceber que Luiz Gama e “sua ousada atuação nos tribunais e na imprensa, bem como a participação em sociedades abolicionistas, interferiu nos encaminhamentos da chamada “questão servil” (ALBUQUERQUE, 2018, p. 329) e ainda, sua maneira incisiva de agir e expor a escravidão e o racismo como pilares daquela sociedade e refletindo a forma de como “ele não abria mão de se reconhecer como homem negro em meios brancos” (ALBUQUERQUE, 2018, p. 329) foram fundamentais para tornar sua atuação e luta política ainda mais evidentes e importantes para a constituição do abolicionismo enquanto movimento de agência e protesto negro e não somente um movimento de esfera estadista, bem como, foi importante para apontar outros caminhos dessas atuações dentro de uma sociedade que não foi estruturada para acesso destes à classes “mais altas”.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Wlamyra. Movimentos sociais abolicionistas. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio (Orgs.). Dicionário da escravidão a liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das letras, 2018.
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de pesquisa em História Social da Cultura, 1999.
CRAVO, Ana Carolina Trindade. Abolição, abolicionismo e a Sociedade Libertadora de Benevides (1881 – 1888). In: NETO, José Maia Bezerra, JUNIOR, Luiz Carlos Laurindo (Orgs.). Escravidão urbana e abolicionismo no Grão-Pará (século XIX).
FERREIRA, Ligia Fonseca (Org). Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. Imprensa Oficial de São Paulo, 2011.
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Da autonomia escrava: uma nova direção para a História Social da Escravidão. Rev. Bras. de Hist. S. Paulo, v. 8 nº 16, pp. 143-160, mar.88/ago.88
SANTOS, Eduardo Antonio Estevam. Luiz Gama, um intelectual diaspórico: intelectualidade, relações étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882). Doutorado em história, PUC-SP, 2014.
Bom dia!!
ResponderExcluirVocê citou alguns autores(as) para demonstrar sobre s livros Primeira Trovas Burlescas de Getulino e outros poemas de Luiz Gama e Lições de resistência com base em recorte temporal. Nesse sentido, gostaria de saber quais fontes será utilizada para o desenvolvimento da pesquisa de acordo com o recorte temporal selecionado?
Alan Martins
Boa tarde, Alan. As autoras citadas são referências na condução das pesquisas sobre Luiz Gama, em especial a professora e crítica literária Lígia Fonseca Ferreira.
ExcluirAs fontes que serão utilizadas na pesquisa são os dois livros destacados no texto que foram organizados por Fonseca e contam com escritos de Gama que foram encontrados em periódicos da época, bem como, o livro de poemas escrito pelo próprio que também foi organizado por Fonseca.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirLizandra, muito interessante sua pesquisa. Gosto muito de reflexões sobre o movimento abolicionista e seus protagonistas, gostaria e saber quais jornais você está utilizando? Nesses normais suponho que apareçam outras figuras do movimento, você poderia falar um pouco sobre?
ResponderExcluirJuliana Alves de Souza
Boa tarde, Juliana. Obrigada pela questão.
ExcluirEu utilizei na graduação (quando iniciei a pesquisa) o periódico A Província de São Paulo (que hoje é o jornal A Folha de São Paulo), nesse momento da pesquisa farei a utilização de um compilado de textos escritos por Gama em diversos jornais da época na imprensa paulista e carioca que encontram-se no livro organizado pela professora e crítica literária Lígia Fonseca Ferreira intitulado Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro, bem como, o livro de poemas escrito pelo próprio. Nas leituras podemos encontrar referências a Joaquim Nabuco, José Bonifácio e, em menor frequência, André Rebouças (este mais novo que Gama).
Não conhecia a história de Luiz Gama, tão pouco a história da escravidão no nosso Estado. Então, só parabenizar pela pesquisa.
ResponderExcluirMacilene Borges
macilenecardoso@gmail.com
Obrigada pelas palavras, Macilene Borges!
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